17 de fevereiro de 2014

A boa exploração

Tarde fria em São Paulo.
Depois de um período bastante seco e de muito sol, desde o final de semana reconheço São Paulo na garoa fina - mas não mais tão fria - e nas chuvas que caíram durante todo o dia de sábado. O arzinho mais gelado da cidade me inebria.

Assim que terminei de ler Morte Súbita comecei a leitura de O lado bom da vida (The Silver Linings Playbook), de Matthew Quick. O narrador desta história apresenta-se em primeira pessoa, diretamente conversando com o leitor curioso dos detalhes de seu aprisionamento num 'lugar ruim'. 

Diferentemente do primeiro livro mencionado, onisciente, em O lado bom... temos frequentemente o contato com os pensamentos de Pat, descritos por este, portanto ser astuto e perceber o que é a realidade mental e o que é a realidade do entorno é um exercício importante. É como em Dom Casmurro, de Machado de Assis: no que acreditar quando só conhecemos um lado da história? É divertido tentar adivinhar se o que está acontecendo faz parte das autorregras do personagem, de seu sistema peculiar de crenças, ou se efetivamente se aplica a seu entorno.

Além disso, o livro evidencia sobremaneira a importância da reinserção social de pessoas com problemas psíquicos em seu meio, com entes queridos e uma rede de apoio que com certeza deve sofrer com as dificuldades, mas que é essencial para o controle de impulsos, a construção de significados e sentidos do indivíduo, a sanidade e saúde mental.

Faltam ainda poucas páginas para terminar o livro e o que mais me chamou a atenção foi o terapeuta de Pat, Cliff. O personagem principal evidentemente evolui positivamente durante cinco meses de relatos, divididos em capítulos curtinhos, e é belo observar as descrições que este faz em relação a seu terapeuta. Percebemos as habilidades sociais de Pat ao descrever e conseguir reconhecer as reações de seu terapeuta, tanto quanto podemos ver a construção do vínculo entre paciente e terapeuta - passagens muito bonitas do livro.


Em paralelo às impressões sobre este livro, gostaria de relatar uma entrevista da qual participei hoje. O processo de busca por trabalho e o hunting das empresas pode ser conduzido de formas muito diferentes. Em princípio acredito que o trabalho humano, quando valorizado e bem explorado tem o imenso potencial de extrair o melhor de cada pessoa e foi como me senti hoje.

Ter a chance de falar sobre si, sobre suas experiências, objetivos e habilidades é algo que demanda uma articulação e boas falas, além do autoconhecimento e auto-observação. Mas a maneira como alguém demanda sua apresentação tem o poder de te fazer entender bem a si mesmo, definir metas e objetivos e buscar o melhor de si. Exploração boa.

No livro, Pat promove uma exploração exagerada pela definição de um corpo perfeito, mas com um objetivo claro. Constantemente evidencia o quanto explora as reações das outras pessoas, descrevendo como tais reações o afetam e a partir disso o que ele espera delas.

O terapeuta de Pat explora suas emoções, autocontrole e afetos promovendo o equilíbrio psíquico e mental de seu paciente, mas só alcança resultados a partir de boas habilidades e da participação efetiva do outro. 

Então... a boa exploração tem poder. Um poder que a psicologia, fico contente em destacar, sempre se esforça por alcançar e desenvolver. O psicólogo parte do acompanhamento próximo e 'organização das ideias e emoções' para que cada um possa ser o melhor que puder, para si e para o mundo. 

Pat me fez lembrar um pouco o livro Poliana e Poliana Moça, de Eleanor H. Porter, já que ambos personagens principais exercitam a positividade e a esperança de que no final tudo irá acabar bem.

Seja uma expectativa, uma chance de trabalho, uma promessa. O importante é acreditar e continuamente explorar o que há de melhor e mais complexo em cada um. O lado bom da vida é a oportunidade de descoberta da felicidade.




Pós-scriptium:
Como fiz com o primeiro livro, gostaria de transcrever passagens que me chamaram a atenção em O lado bom... aí vão.

"Cliff não fiz que devo encarar o que ele acha que é minha realidade."

A respeito do romance A redoma de vidro, de Sylvia Plath
"_ Porque esse romance ensina os jovens a serem pessimistas. Nenhuma esperança no fim, nenhum final feliz. Os adolescentes devem aprender que...
_ A vida é dura, Pat, e os jovens têm de saber quão difícil ela pode ser. 
_ Por quê?
_ Para que sejam solidários. Para que compreendam que algumas pessoas têm mais dificuldades do que eles e que uma passagem por este mundo pode ser uma experiência totalmente diferente, dependendo de quais substâncias químicas estão ativas na mente de um indivíduo."

"Ele comete alguns erros, mas eu nem ligo, porque ele está se esforçando muito para tocar a música corretamente para mim e é isso que importa, não é?"

"Nas fotos, minha mãe está usando um vestido marrom-chocolate e uma faixa vermelho-sangue sobre os ombros nus. A cor de seu batom combina perfeitamente com a da faixa, mas ela está usando muita maquiagem nos olhos, o que a faz parecer um guaxinim. Por outro lado, seu cabelo está arrumado com aquilo que Nikki chamaria de 'um penteado clássico' e está muito bonito, então digo à minha mãe que ela é muito fotogênica, o que a faz sorrir."

"Muitas vezes a vida real acaba mal, como aconteceu com nosso casamento, Pat. E a literatura tenta documentar essa realidade, mostrando que ainda é possível suportá-la com nobreza."

12 de fevereiro de 2014

Passagens do livro "Morte Súbita"

Faltavam apenas umas 250 páginas ontem, quando escrevi a resenha do livro Morte Súbita. Horas e horas de leitura hoje me permitiram terminá-lo. Triste. Do tipo "final realidade" e não o final feliz que geralmente esperamos em obras de ficção.

"Finais realidade" são importantes, pois dependendo da história um final floreado o bonitinho não faria jus a toda trama. Penso que talvez tais finais nos tragam a consciência de que independente da forma como as vida segue na realidade, se a virmos com olhos mais cuidadosos e assíduos encontraremos bonitas narrativas em todos os lugares. E que finais felizes podem ser diferente dos grandes estereótipos.

Apenas fiquei tentada a transcrever algumas passagens do livro que gostei mais.

"O psicólogo havia lhe dito para não tentar confirmar ou contradizer o conteúdo desse tipo de pensamento. Tinha apenas que reconhecer a existência dele e seguir em frente, como se tudo fosse absolutamente normal, mas isso era como tentar não coçar uma coceira insuportável".

"... uma minúscula  fagulha de esperança se acendeu dentro ela, imaginando que Tessa pudesse interceder a seu favor. Será que a compreensão do desespero ... poderia, enfim, provocar uma ruptura na desaprovação implacável da sua mãe, no seu desapontamento constante, no seu criticismo empedernido e sem fim?"

"... mas principalmente riam porque estavam rindo, alimentando os próprios risos até não aguentarem mais".

"No fundo desejava uma vida que havia vislumbrado, mas jamais experimentara. No entanto, essa mesma vida desejada o assustava. Escolher é algo perigoso: quando escolhemos, temos que abrir mão de todas as outras possibilidades".

E sobre esta última passagem me lembrei de um filme muito bom: Senhor Ninguém (Mr. Nobody, 2009), no qual a infinita possibilidade retrata múltiplas vidas que poderiam ser vividas e a certeza de que nunca estaremos livres de alegrias e decepções/traumas/tristezas. Vale a pena assistir.




Estamos continuamente nos equilibrando entre escolhas e consequências. Entre momentos, decisões, atitudes e pessoas.
Mais um livro que acaba, recomendo a todos esta leitura tão intensa e bem construída.


11 de fevereiro de 2014

Conversando sobre o primeiro livro de 2014


Engato a quarta marcha da leitura depois de semanas meio empacada com o novo livro, ganho em um divertido amigo secreto no final do ano passado.
Escrever minhas impressões sobre o livro será um pouco custoso, uma vez que algumas teclas do meu computador estão insistentemente se recusando a funcionar. Um pouco irritante, mas a ânsia pela escrita não aparece há tanto tempo que me recuso abandonar essa vontade agora por causa de cinco ou seis teclinhas de nada.

Estou lendo Morte Súbita ("The Casual Vacancy", título original), de J. K. Rowling. A mundialmente conhecida autora da série de livros do bruxo que foi grande companheiro da minha adolescência e de tantos outros jovens, lança essa obra continuando um belo trabalho.

Quando o livro estava para ser lançado li uma reportagem que dizia que a autora enviou o manuscrito do livro anonimamente para diversas editoras, usando um pseudônimo. Este livro foi recusado por várias delas, algo que muito provavelmente não aconteceria caso soubessem a mina de ouro que estavam dispensando. O interessante dessa atitude é perceber o quanto o anonimato permite a exosião de oiniões mais verdadeiras.

A trama do livro é bastante complexa na medida em que a autora narra uma rede de conexões entre pessoas de Pagford e Yarvil, apresentando em doses envolventes a história de vida de cada personagem e suas características mais marcantes.

Tive alguma dificuldade de me envolver com a historia no início. Me sentia como se numa conversa entre amigos antigos, sendo exposta a pessoas, lugares e situações já familiares a alguém e completamente desconhecidos meus. Entretanto, a medida que a leitura avança (e seria impossível desistir dessa leitura) os nomes dos personagens são memorizados e estes vão se tornando velhos conhecidos. A empatia com as sensações, felicidades e - princialmente - dores dos habitantes das pequenas cidades aumenta a cada página.

O anonimato do leitor é uma condição privilegiada. Me anima poder mergulhar nos pensamentos, sentimentos e histórias individuais e, como psicóloga, passo um tempo considerável pensando no que poderia ser feito, analisando aspectos que me chamam mais a atenção.

A história apresenta fortes elementos de uma sociedade tradicional e engessada em estereótipos. Ainda avalio essa vicissitude da trama: a grandessíssima maioria dos relacionamentos descritos entre casais, amigos, pais e filhos, tem a qualidade do silêncio e dos não ditos. Relacionamentos em que o verdadeiro sentimento não é expresso pelos mais variados motivos circunscritos às especificidades de cada grupo de pessoas envolvidas. Pessoas que deixam de expressar seus sentimentos vivem num enclausuramento psíquico potencialmente problemático. Asas à imaginação são benéficas quando catárticas. Não quando alimentam fantasias, crenças e regras impeditivas de experiências humanizadoras, enriquecedoras e - simplesmente - felizes.

A única família que aparenta uma funcionalidade saudável é a de Barry Fairbrother, aquele personagem falecido via morte súbita no início da trama. Entretanto... a aparência se deveria ao luto, à permanência do que há de positivo daquele que se foi? Muito provavelmente.

Talvez um dos impulsos mais fortes durante a leitura seja o de voltar as páginas àquelas anteriores ao começo do livro, na cabeça de J.K. Rowling, e conhecer o Sr. Barry, para validar e/ou refutar as opiniões pessoas expressas por todos os personagens. Mais ainda: para tomar partido por um lado ou outro, aliar-se a uns e não a outros. De forma um tanto distanciada mas ainda assim intimista, participamos da dinâmica da cidade, tornamo-nos cidadãos e quase posso sentir a suave brisa do rio que cruza o distrito de Pagford.

Ainda não terminada a leitura, não sei onde todas as complexas relações chegarão e estou curiosa. Agora, finalmente envolvida, anseio pelo desfecho e conclusões (que talvez não aconteçam...) tanto quanto gostaria que o livro tivesse umas 800 páginas, para que a cumplicidade recém construída não acabe tão rápido quanto a velocidade da leitura.

Como no livro A menina que roubava livros, de Markus Suzak, fico sentida de me empolgar com a leitura só depois das primeiras 100 páginas... é como fazer um amigo que vai embora dentro de pouco tempo: sente-se mais a partida pelos momentos sabidamente não aproveitados e que depois nunca serão. Como tudo na vida, portanto, é hora de aproveitar o tempo que nos resta, mergulhar em mundos individuais riquíssimos e apreender um pouco mais de belezas e dores. Antes que o próprio livro morra subitamente na página 501, deixando-nos órfãos de mais um amigo.